1.2.09

curto capítulo II: sobre ela

Pensava ela, no nosso belo-azul-ensolarado dia de manhã, nas coisas que fizera naquela tarde anterior. Diante do espelho com o creme de espinhas espalhado pelo rosto - creme que fazia dois anos que estava no depósito de coisas inuteis, acompanhado do baton cor de boca, da meia calça fina, do secador de cabelos - repetia as frases compulsivamente, as frases que deveria ter dito a ele com alguma irresponsabilidade, como ele já tinha feito algumas vezes com ela. Os olhos de cor castanho-comum lagrimejavam e com o rude pensar sugeriu a si mesmo que era a validade do creme que estava vencida. Na verdade não adiantava chorar agora, muito menos pragejar o gozo rápido de uma tarde quente.

10:33 AM chegou perto da geladeira e a abriu procurando algo para mastigar, viu só uma garrafa d'àgua e lembrou da crise renal do seu amigo, e friso, não lembrou do amigo, ele já martelava a cabeça de Maria [que não era Tereza, nem Das Graças, muito menos Luísa) desde as 5:48 AM com aquelas imagens difusas de sorrissos, beijos, carícias e de concentração na leitura de livros. Maria [só Maria] permitiu-se voltar alguns dias do tempo corrido da vida e rememorar umas poucas trocas de olhares tímidos nos meados do ano anterior. Por ela estas lembranças poderiam sofrer processo de decomposição, mas as ingratas não saiam dela, as levavam era de volta a tempos passados quando ainda não conhecia as formas do corpo humano como convites irrecusaveis ao prazer. Ficou a indagar-se quantas mulheres aquele amigo já possuira e quantas frequentavam aquela cama confortavel e afixionada por aquelas performances delirantes queixava-se do pouco ritmo de seus movimentos. Foram dois minutos que a enxurrada da memória veio em um fluxo intenso e ao fim deles concluiu sua fragilidade: não poderia nunca confiar em alguem pois até ela colocara-se na mira dos que deveriam dormir e não acordar. A filosofia de Maria era que a vida vale a pena se a consumimos com vontade e destreza. Concordo com ela numa parte. E ela até que consumia a vida com vontade, todavia a habilidade nem a experiência havia lhe proporcionado em quantidade necessária.

Voltou os olhos para aquele livro de capa rosa e páginas amareladas decidindo o resto do seu dia, deitada nua na cama em pronação devoraria cada fonema daquele velho que tão bem escrevera sobre paixões humanas. Talvez compreenderia sua condição - que até deveria ser passageira só que as concepções de Maria e do Tempo de passageiro diferiam muito, para a primeira deveria ser rápido e medido em dias, para o segundo não deveria ser nem isto, nem aquilo, nem medido podia ser.

Declamava Maria
" - a alma que possui a mais longa escala e mais fundo pode descer,
a alma mais extensa, que mais longe pode correr e errar e vagar dentro de si,
a mais necessária, que com prazer se lança no acaso,
a alma que é, e mergulha no vir a ser, a que tem, e quer mergulhar no querer e desejar,
a que foge de si mesma, que a si mesma alcança nos circulos mais amplos,
a alma mais sábia, à qual fala mais docemente a tolice,
a que mais ama a si mesma, na qual todas as coisas têm
sua corrente e contracorrente, seu fluxo e refluxo - "

Perdoe-me, mas devo adiantar. Maria tinha uma alma livre e sofria por isso, queria prendê-la dentro de si. Não conseguia. A velhice era esperança para ela e sua mãe com o olhar de lince esperava isto também. Conversavam muito apesar do silêncio constante de Maria, a mãe vezes por outra argumentava diante da filha sua precisão de colocar para fora em som o brilho dos olhos perdidos em tormentas nuvens. A filha ignorava, era silenciosa e arrogante. Até a forma de andar denunciava tais características.

Lera naquele dia entre perdas de raciocínio e cochilos, 117 folhas. Tomou um café forte e vestiu-se bonita para conquistar uns elogios. Pegou a bolsa comprada na feira de todo sábado na praça e saiu a rebolar com certa decência, podia ser sensual, mas odiava ser vulgar e percebera que deixou-se ser por duas horas no dia de ontem. Quando findava o dia pensou no cheiro daquele lugar e até podia sentir - de longe - o gosto do suor amigo. Comeu, sorriu e pensou sobre o mundo e um filete sobre arte. Dormiu sem vê-lo aquele domingo e saboreou a vantagem de ser só quando queria.

21:35 PM. Ela não dormiu sem vê-lo, na verdade ele apreceu lá acompanhado de alguem que parecia melhor que Maria. A unica saída foi desviar o olhar e fingir não ver, porque ela já não sabia o que era, nem o que sentia... um misto de decepção com vergonha, de raiva com medíocridade. Arrependimento talvez. Podia ser de mil maneiras mas foi dessa. Agora de noite tudo parece irreal.

5 comentários:

  1. Estava vendo as fotos do show da roberta sá e é impressionante como vc escreve bem (com palavras e com imagens). bjos! obs: precisamos voltar a fazer "filmes" juntos! =)

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  2. Entre tristeza, dor, frustração, avidez, confidências, eu só consigo lhe dizer: ternura.

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  3. Ahh Sr. L. Cioffi, não sabe como minha curiosidade se torna enorme quando vejo palavras suas por aqui...

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  4. Ah Srta. J. Gomes, você não imagina me põe curioso, tento decifrá-la em suas palavras.

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