16.12.08

Faz alguns dias um rapaz entrou lá na sala que faço estágio. Eu estava acompanhada de uma amiga e essa foi minha sorte ou uma bela coincidência. Sempre fico sozinha naquele lugar, entre cheiro de cigarro, balanço da rede do outro lado da parede e algumas músicas do Marcelo Camelo ou da Céu, identifico ossos e faço algumas pequenas observações de tafonomia, leio também alguns trabalhos de arqueologia das revistas do MAE.

No fundo essa é uma maneira de estar longe mas no mesmo lugar. É uma maneira de me sentir mais independente mesmo crendo que só serei de fato quando chegar aos meus 30 anos. O interessante é que naquele único dia essa amiga me acompanhava. Estavam ali duas pessoas de saco cheio de um espanhol que fala "tchem-tchem" quando gostaria de falar "tcham-tcham" pra dar aquela interpretação dos malditos números nas ciências sociais. Pois é, eu nunca vou usar coeficiente de Pearson pra nada na vida.

O saco cheio, a cabeça vazia e volta e meia falávamos de...de... bem, tudo que mulher fala, seja homem, bolsa, sapato, e até sobre a bunda da fulana de tal que fica caída quando coloca aquela calça horrível de bolsos pequenos. Pura futilidade e alguma inveja que escorria por aqueles comentários, afinal ela tem a bunda caída mas tem também um namorado [ou sei lá o que aquele rapaz de olhos claros é dela] que com as mãos dadas andam pelo corredor do nono andar.
Daí, como eu dizia lá em cima, um rapaz entra, meio desconfiado, um pouco nervoso, perguntando sobre "aquele cara cabeludo que trabalha aqui, o.. o... Guilherme".
- Ah sim, o Guilherme. Olha ele não está agora, deve chegar um pouco mais tarde.
- Poxa, mas você não sabe das coisas de antropologia não? Antropologia não estuda a beleza das pessoas?
- Bem, antropologia não estuda beleza não, estuda a "cultura".

(abro agora um espaço pra dissertar sobre minha incapacidade de falar sobre aquilo que eu estudo faz três anos. Sim eu estudo a cultura. A boa e velha, cultura. Essa lata de lixo, ou quem sabe, buraco negro onde a gente joga tudo e mais um pouco da vida. Não importa quantas aulas eu já tive, muito menos o que a porra do geertz ou o babaca e caquético do levi-strauss falam, e não importa também se já fiz uma disciplina que seu nome era Teoria da Cultura, parece que nada adiantou, parece que tudo [e isso inclui meu próprio modo de vivenciar meus dias] continua a mesma coisa. Deprimente.)

- é que minha tia fala que minha era índia, índia lá do nordeste. Não tem essa coisa de índio feio e índio bonito ? Os índios lá de cima, são os feios, e eu... me acho feio, sabe...
- aah cara, não tem essa coisa de índio feio e índio bonito não... eu não sei te falar sobre essa beleza que você está dizendo...
- mas como eu faço pra saber se eu sou de índio mesmo? aqui vocês fazem o teste do sangue?
- aqui não, você pode fazer isso na Fiocruz.

Mandei o rapaz voltar outra hora, estava já preocupada com aquela estória, com aquele jeito meio, digamos, anormal de olhar para os lados e coçar a cabeça estranhamente. Ele saiu e me deixou ali com a sensação de fracasso misturada com a de medo. Várias pessoa já me disseram: "tranca a porta Jaque", "não fica aqui sozinha", "presta atenção em que hora você vem pra cá". Não adiantou. Minha tal amiga foi embora, e a acompanhei até o hall e quando voltava quem estava na porta do laboratório? Aquele rapaz. Me escondi, esperei ele desistir e então corri, peguei meus papéis e fui para a sala de estudos.

Fraqueza com preconceito e uma pitada de desconfiança.
Esses foram os elementos que me levaram agir dessa maneira.

E a tal beleza ficou na minha cabeça:
"Antropologia não estuda a beleza das pessoas?"

Sim, a antropologia estuda a beleza das pessoas - responderia com todo o gosto isso se perguntassem tal coisa. Aprendi algo que nenhum cara desses aí disse até agora nos textos que li. E o melhor de tudo, o cara descendente dos índios feios me ensinou isso. E tive medo dele, ele parecia saber melhor que eu de antropologia. Sua blusa azul gasta e os chinelos empoeirados me denunciavam de onde ele vinha e suas palavras me deixavam confusa: bobo ou esperto, consciente ou alucinado, pares de oposição. Essa é a beleza que estudo, um complexo de laços e símbolos, uma gama de sentimentos, um conjunto incontrolável de relações. Talvez melhor que estudar seria admirar. Viver é uma experiência estética cortada por planos de ação construídos enquanto a própria vida acontece.


* chega por hoje. não cumpri o que disse (postar uma foto), estou desocupada o suficiente para pensar na beleza das pessoas e escrever sobre minhas feiuras.

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